quinta-feira, 28 de junho de 2012
Lição de vida
quarta-feira, 11 de maio de 2011
sábado, 6 de novembro de 2010
Coração assustado
Um pinto meio galo
No dia em que nasceu. Sentiu uma sensação de deslumbramento. Ficou algum tempo contemplando as coisas em volta, depois deu suas primeiras passadas de timidez.
Era um pinto muito esquisito! Desde pequeno começou a trilhar os mais perigosos caminhos, desobedecendo às ordens da velha sua mãe. Seu relacionamento com a família era péssimo. Preferia isolar-se da turma a seguir os ditames das aves imponentes que, muitas vezes, criam regras absurdas e atribuem sérios deveres aos pobres recém-nascidos. Assim viveu muito tempo saboreando o gosto da solidão, até ignorar definitivamente sua origem.
Senhor de si, o pinto desfilava pelo terreiro da fazenda, com orgulho e jovialidade. Estava feliz. A escola da vida havia-lhe ensinado o essencial para viver condignamente sua liberdade.
Queria ser galo. Que se cuidassem as galinhas; pois com ele não haveria corê-corês. Ai daquela que tentasse alguma desculpa para se livrar da responsabilidade!
A primeira vez que bateu asas e saudou a manhã, com seu corocó-quiriqui, ficou muito eufórico. Seu sonho já se estava realizando. Sem dúvida, aquela era a principal manifestação de um ser que pretendia, única e exclusivamente, exercer as funções napoleônicas, conferidas a um imperialista rei do terreiro.
Todavia não ficou de todo tranqüilo. Tinha ainda receio do carijó velho que governava, com habilidade, sua raça naquele reduto. Golpe de estado? Nem pensar! O “seu fulano” era forte e gozava de muito prestígio junto a seus munícipes. Toda cautela, portanto, era pouca e necessária.
Apesar de tudo que aprendeu na escola do mundo, ao pinto-frango, meio galo, faltava muita coisa para se tornar um bom governante. Passou a observar as atitudes e iniciativas do velho, seu rival carijó. Achou bem arcaico seu proceder e começou a matutar alguma coisa para modernizar e dinamizar suas realizações.
O canto da manhã teria que sofrer alguma alteração para sair do conservadorismo. O poleiro deixaria o jirau de madeira seca e passaria para o pé de goiaba, um pouco mais
Depois de parafusar tudo isso, o pinto, quase galo, passou a trabalhar, diplomaticamente, querendo ganhar moral e sobretudo confiança. No início, houve uma certa rejeição por parte das galinhas, mas, com cautela, acabou conquistando seu objetivo, apesar de ainda continuar correndo em busca da realização “daquelas coisas” destinadas à reprodução da espécie. Mas era uma questão de tempo, pois, em breve, isso também se resolveria.
Faltava agora liquidar o carijó e assumir suas funções. Rolaram vários planos para tentar um galicídio, não chegando, porém, a executar nenhum. Era preciso cautela. Se fracassasse, poderia levar uma traulitada na idéia e perder a briosa pro resto da vida.
Depois de muito pensar, ficou um pouco acabrunhado, visto que não vislumbrara nenhuma saída gloriosa para exterminar o velho. Num dado momento, como a hora andava longe, decidiu dormir. Subiu o poleiro, fechou os olhos e esqueceu-se do mundo. Quando acordou, tentou andar, não o conseguiu. Estava preso. Muito bem preso! Um prisioneiro sem as mínimas condições de continuar sonhando com realizações alvissareiras e progressistas.
Por fim, atônito e sem forças, o pinto, meio galo, levantou a cabeça, viu uma mulher se aproximar, agarrar o seu corpo, pisar em seus pés e acariciar suas mamas. No desespero, tentou dizer alguma coisa, mas não deu tempo. Uma faca transparente feriu-lhe o pescoço, findando seus sonhos. Seu destino seria a panela, onde se transformaria em comida para alimentar a gula de uma gente faminta. Uma pena! Mas foi assim: o pinto não mais cantou. Morreu.
Hoje já não se lembra mais daquele que, em algum momento de sua existência, achou ser possível lutar por uma vida melhor. Por isso, a rotina, no terreiro, permanece como d'antes. Por enquanto, nada mudou. Assim, o velho carijó continua poderoso, livre e solto, apesar dos vícios contraídos ao longo do tempo de sua governança.
O novato
Ele chegou, numa sexta-feira, um jeito desconcertante, feito fera acuada, no meio da civilização. Achou lindo o modo como o professor iniciou os trabalhos de seu magistério naquele dia. A indiferença, porém, o incomodava. Ninguém lhe dirigiu palavras. Ele até que tentou, liberando timidamente um “bom dia”. A turma indiferente, não percebeu a sua presença. Ou melhor: fez questão de não observá-la. Pois ele estava ali, apesar de seu coração entristecido e de sua alma em pedaços.
O professor até que parecia boa praça. Falava sério, mas não representava qualquer ameaça. Às vezes esboçava uma piadinha, uma brincadeira sem graça, procurando descontrair a turma. Num dado momento, até ele, na condição de novato, achou engraçado, quando o professor, sem nenhuma queda para humorista, usou de um fato pitoresco colorindo, com um matiz especial, o assunto de sua aula.
O mestre, com seu jeito trapalhão, com sua calvície alongada e a escassez de cabelo na cabeça, disse de um sujeito desonesto que tinha tomado um dinheiro emprestado e nunca se interessara em pagar a dívida. Apesar da “sem graceza”, deu pra rir um pouquinho. Ou melhor: todos se esforçaram para rir para não deixar o professor desapontado.
Isolado num canto da sala, o novato ficou, engasgado, amargando o silêncio da discriminação, do preconceito e da exclusão. Era pobre, viera da roça, trazendo consigo a realidade natural refletida em sua origem campestre. As mãos calejadas pelo cabo da enxada, a tez queimada pelo calor do sol, suas vestes batidas pelo passar do tempo e as feições caídas pelo cansaço. Afinal, três horas de caminhada até à cidade não era para qualquer um, apenas para ele, o novato, que desejava muito retomar seus estudos, apesar da defasagem e, segundo pensava, do pouco embasamento.
Mas isso não era mau; ruim, era o desprezo, a discriminação e o preconceito. Ninguém lhe dirigiu palavras, nem o professor, apesar da temática da aula que ministrava: inclusão social, direitos humanos, cidadania.
O novato pensava, cabisbaixo, observava tudo, observava todos. O professor tagarelava muito. Sério ou não, falava em justiça, em respeito, em liberdade e independência. Independência ou morte! Ironizava.
Dizia o professor, citando o poeta Murilo... Murilo Mendes, era esse o sobrenome dele. Mas o professor falava que o “brado retumbante de um povo heróico” foi um alívio, um grande alívio pela liberação do cocô. Ou seja: o Imperador estava apertado, a parcimônia pressionava, ia sair de qualquer jeito e nada melhor do que um grito bem forte para deixá-lo livre em “berço esplêndido”.
Na verdade, o professor lembrava o poeta, cujo livro “Histórias do Brasil” satirizava e ironizava a pátria amada, a nossa pátria Brasil. Se o mestre falava verdade ou não, o novato não sabia. Sabia apenas que a “liberdade ainda que tardia” não era realidade entre nós, tampouco na sala de aula onde se achava de corpo presente, sem que os colegas e o professor dessem conta de sua opaca existência. Não havia justiça, nem respeito; havia discriminação e preconceito.
A independência do Brasil não libertou a maioria dos patrícios. São milhões os cativos, os injustiçados. Gente sofrida, sem eira nem beira, sem cidadania. Um estranho no ninho, com as pernas doendo, os pés descalços, encolhidos no chão da sala.
Vergonha, humilhação, dor; falta de amor, de solidariedade, compaixão. Mas era simplesmente um novato, não era cidadão, era o que parecia. Aliás, ali ninguém era, todos indiferentes, não lhe estendiam a mão. Assim, ele ficou. Quando a aula expirou, todos saíram, sem lhe dar atenção. Do jeito que iniciou, tudo terminou.
Cada vez mais triste, o novato ficou. Não entendia tanta indiferença. Onde estava a justiça, o respeito e a liberdade? Foi o último a sair, cabisbaixo. Durante as três horas de andança, voltando pra casa, ele seguiu pensando na difícil decisão: não dava para voltar, era muita humilhação.
A partir daquele dia, de novato em sala de aula, passou a desistente no diário do professor. Seu nome, sublinhado de vermelho, não significa nada, apenas um traço no lugar de alguém que não fora notado e que ora jaz no esquecimento da história educacional brasileira. Alguém que ficou sufocado, sem a oportunidade de exprimir seus desejos, permanecendo no anonimato, injustiçado, sem forças, sem direitos e sem cidadania.
(Professor Doniseti)