sábado, 6 de novembro de 2010

Coração assustado

Um pouco apreensivo, cabisbaixo, o paciente chegou ao hospital, acompanhado da esposa e de sua irmã primogênita. Não era muito ligado nesse negócio de cirurgia, aliás, tinha feito somente duas até aquela data. As outras pareciam mais simples, mas nem por isso deixou de sentir preocupação. Isso é uma coisa natural, vem sem nenhum planejamento. A esposa e a irmã diziam-lhe que ficasse tranqüilo, pois no final daria tudo certo.
Enquanto buscava confiança, chegou um enfermeiro, anunciando o momento da entrada para os preparativos pré-cirúrgicos. Carinhosamente, beijou a esposa, a irmã, e acompanhou o Antônio – era esse o nome do dito cujo – disfarçando tranqüilidade. Na enfermaria, num espaço reservado, despiu-se, pôs o avental e na cadeira de rodas, seguiu para o bloco cirúrgico, conduzido pelo enfermeiro. Instantes depois, chegou a equipe médica, para os procedimentos de praxe.
- Eu sou a Doutora que vai comandar a sua cirurgia, senhor. Sou cardiologista, especialista em cirurgias do coração. O seu procedimento deve demorar umas 6 horas, porque é bastante delicado e inspira muito cuidado. Durante o procedimento, não podemos deixar o senhor se mexer. Por isso, se o senhor acordar e estiver amarrado, não se assuste. Nós vamos amarrá-lo bem para o senhor não atrapalhar o nosso trabalho. Assim, é mais fácil garantir o sucesso da cirurgia.
O paciente, um pouco assustado, buscou forças, não se sabe onde e arriscou algumas palavras:
- Doutora, do jeito que a senhora fala, me amedronta. Eu ficaria mais tranqüilo, se a senhora tivesse começado o trabalho sem me dizer nada. Agora estou em dúvida. Para que amarrar, se já tem a anestesia? A não ser que a senhora esteja com medo da anestesia não pegar e como deve doer muito, a única maneira de eu não me mexer é estando mesmo amarrado.
Aquelas palavras, apesar de pouco elaboradas, buscavam consolo para aquele coração atormentado. A reação da médica o apavorava cada vez mais.
- Senhor, eu sou uma médica transparente e gosto de preparar bem meus pacientes. Você não precisa de preocupação, é um procedimento de mais ou menos 6 horas. A anestesia é geral, você não vai ver nada. Nós vamos amarrá-lo, sim, pois é uma questão de segurança. Em alguns pacientes, a anestesia dura até 7 horas, varia de paciente para paciente. Como o senhor é um pouco ansioso, parece meio preocupado, é interessante amarrá-lo bem. Se o efeito da anestesia terminar antes, o senhor estando imobilizado, a gente pode concluir o serviço, sem problemas.
- Mas sem anestesia, doutora? Isso é muito assustador. Imagine eu deitado na cama cirúrgica, sabe-se lá até naquela posição de frango assado, a senhora me operando, a anestesia acabando o efeito, eu acordando, sentindo aquela dor horrível! Sem anestesia, não, doutora? Se o efeito dela acabar, aplique outra. É o melhor que a senhora faz.
- Isso não é possível, senhor. O anestesista vem aqui, aplica a anestesia, sai, vai à outra sala de cirurgia, faz outra anestesia, depois corre para outro hospital, anestesia outra pessoa e depois que ele sai de um lugar, se precisar voltar, é impossível. O senhor sabe como é o trânsito: dependendo do horário, são horas e horas para se locomover de um lugar a outro. A gente não pode contar com a possibilidade de um reforço anestésico.
O paciente, cada vez mais surpreso e amedrontado, reage, sem qualquer possibilidade de provocar um revertério na situação.
- Doutora, eu não posso entender isso, afinal são vidas em jogo. Os cuidados com a saúde do ser precisam vir em primeiro lugar. Eu vou operar, mas acho importante a presença do anestesista. Se a anestesia não pegar, o reforço deve acontecer. Dizem que antigamente as cirurgias eram sem anestesia, mas isto era antigamente.
- Que nada, senhor. Tem situações em que o efeito da anestesia é apenas psicológico. Às vezes, para baixar o custo, injeta-se uma coisa qualquer e a pessoa se sente anestesiada. Ela sente dor, mas na cabeça dela, aquilo não é dor, apenas o desconforto de uma agressividade contra o corpo. Não digo isso para assustar o senhor, mas porque são coisas importantes que a gente vivencia no dia a dia de nosso trabalho.
- Eu não acredito que seja assim, doutora. Estou surpreso, com o coração apertado, apertado. Logo ele, coitado, que está precisando de um reparo para continuar funcionando, sofrendo um golpe tão violento. Violento mesmo! A senhora pode até não acreditar, mas ele está acelerado, meio sufocado, num processo de taquicardia descontrolada. Para a senhora, pode até não ser nada, mas, para mim, o doente, é assustador ouvir tudo isso da parte da especialista em medicina.
- Você está vendo, senhor?! Como é que o senhor pode comparecer para uma cirurgia com tanta preocupação. Não há razão para tanto. O senhor precisa relaxar, reduzir a ansiedade e encarar a coisa naturalmente. A preocupação excessiva pode trazer sérias conseqüências, inclusive para a vida do senhor. A gente quer que tudo corra bem. Por isso, eu até vou pedir à equipe de enfermeiros que reforce as amarras para o senhor não se mexer mesmo! Como é que eu vou fazer essa intervenção cirúrgica, se o senhor não relaxa. Esse excesso de ansiedade não combina com uma intervenção tão séria no coração. O coração é muito delicado e pode apagar a luminosidade de uma hora para outra.
- Doutora, a senhora está dizendo que eu posso morrer, é isso? Eu vim aqui para viver, não para morrer. Se é tão sério assim, não sei por que eu tenho de me operar. Já pensou: eu de anestesia geral, desacordado, a senhora me operando, 6 horas de procedimento, termina a cirurgia, todos esperando a minha reação, depois de mais duas horas, eu apagado, depois vai ver, eu fui, sem perceber que morri. Sabe, doutora, não é fácil para mim, não. Morrer nessas condições é muito triste. Imagine minha família, meus amigos que torcem por mim, de repente, estão no meu velório, derramando lágrimas por causa de uma perda irreparável como a minha.
- Meu filho, para morrer, basta estar vivo. A morte é algo natural. Quem nunca morreu está morrendo. Quantas vezes você já ouviu isso?Ontem mesmo, uma senhora ainda jovem, chegou aqui para uma cirurgia simples, coisa que não oferecia nenhum risco, foi pra mesa de cirurgia, nas mãos de um cirurgião famoso, super competente, foi só começar e a jovem anestesiada se apagou, sem que ninguém percebesse. Por isso que eu falo que o senhor deve relaxar. Em situações delicadas como essa, a melhor coisa que o senhor faz é manter a calma. Essa ansiedade pode atrapalhar tudo. Eu, para ser sincera, não quero que o senhor morra, mas se o senhor não colaborar, sei não. De repente, uma coisa que poderia ser simples pode acabar em óbito.
- É assim, doutora? Condições de me relaxar diante de uma situação como essa é difícil. Se a senhora estivesse no meu lugar, a senhora entenderia. Quero colaborar muito com o trabalho da senhora, é esse o seu ofício. Não é fácil ser operado nessas condições, sem certeza de que vai dar certo. Pelo que a senhora coloca, as chances de sucesso são mínimas, quase nada. Relaxar assim, é impossível. Não quero ser operado agora, e encontrar daqui a 6, 7 horas, meus amigos e familiares derramando lágrimas pelo meu passamento.
- É, senhor, está difícil. O senhor não relaxa. Por causa de pacientes como o senhor que a gente fica sem segurança para intervenções cirúrgicas graves assim. O senhor parece temer mais a cirurgia que a morte. O senhor tem que entender que a morte é um processo natural e que a cirurgia é uma necessidade. Se o caminho natural do senhor para a morte for a cirurgia, o senhor deve encará-la com naturalidade.
Então, vamos, doutora, a senhora me convenceu. Chame o anestesista e comece logo a cirurgia.
- Pois é, o senhor demorou a se decidir, pintou uma emergência e o anestesista teve que se retirar.
- Não tem problema, doutora. A senhora disse que o efeito da anestesia é mais psicológico. Pode ir sem anestesia, mesmo.
- Tudo bem. Então vamos!
- Ai! Hum!! Aaai!!! Aaaaaaaaaai!!!!!!!!!
(Professor Doniseti)

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