sábado, 6 de novembro de 2010

Um pinto meio galo

No dia em que nasceu. Sentiu uma sensação de deslumbramento. Ficou algum tempo contemplando as coisas em volta, depois deu suas primeiras passadas de timidez.

Era um pinto muito esquisito! Desde pequeno começou a trilhar os mais perigosos caminhos, desobedecendo às ordens da velha sua mãe. Seu relacionamento com a família era péssimo. Preferia isolar-se da turma a seguir os ditames das aves imponentes que, muitas vezes, criam regras absurdas e atribuem sérios deveres aos pobres recém-nascidos. Assim viveu muito tempo saboreando o gosto da solidão, até ignorar definitivamente sua origem.

Senhor de si, o pinto desfilava pelo terreiro da fazenda, com orgulho e jovialidade. Estava feliz. A escola da vida havia-lhe ensinado o essencial para viver condignamente sua liberdade.

Queria ser galo. Que se cuidassem as galinhas; pois com ele não haveria corê-corês. Ai daquela que tentasse alguma desculpa para se livrar da responsabilidade!

A primeira vez que bateu asas e saudou a manhã, com seu corocó-quiriqui, ficou muito eufórico. Seu sonho já se estava realizando. Sem dúvida, aquela era a principal manifestação de um ser que pretendia, única e exclusivamente, exercer as funções napoleônicas, conferidas a um imperialista rei do terreiro.

Todavia não ficou de todo tranqüilo. Tinha ainda receio do carijó velho que governava, com habilidade, sua raça naquele reduto. Golpe de estado? Nem pensar! O “seu fulano” era forte e gozava de muito prestígio junto a seus munícipes. Toda cautela, portanto, era pouca e necessária.

Apesar de tudo que aprendeu na escola do mundo, ao pinto-frango, meio galo, faltava muita coisa para se tornar um bom governante. Passou a observar as atitudes e iniciativas do velho, seu rival carijó. Achou bem arcaico seu proceder e começou a matutar alguma coisa para modernizar e dinamizar suas realizações.

O canto da manhã teria que sofrer alguma alteração para sair do conservadorismo. O poleiro deixaria o jirau de madeira seca e passaria para o pé de goiaba, um pouco mais em baixo. O ninho das botadeiras e chocadeiras sairia do artificialismo. Seria no meio do capinzal e não nos quadrados de madeira, feitos por mãos carapinas. Considerou um absurdo o galo ter que correr atrás das galinhas para fazer “aquelas coisas” inerentes à natureza da procriação animal. Faria, pois, um trabalho sério de conscientização junto delas, a fim de evitar um gasto excessivo de energia.

Depois de parafusar tudo isso, o pinto, quase galo, passou a trabalhar, diplomaticamente, querendo ganhar moral e sobretudo confiança. No início, houve uma certa rejeição por parte das galinhas, mas, com cautela, acabou conquistando seu objetivo, apesar de ainda continuar correndo em busca da realização “daquelas coisas” destinadas à reprodução da espécie. Mas era uma questão de tempo, pois, em breve, isso também se resolveria.

Faltava agora liquidar o carijó e assumir suas funções. Rolaram vários planos para tentar um galicídio, não chegando, porém, a executar nenhum. Era preciso cautela. Se fracassasse, poderia levar uma traulitada na idéia e perder a briosa pro resto da vida.

Depois de muito pensar, ficou um pouco acabrunhado, visto que não vislumbrara nenhuma saída gloriosa para exterminar o velho. Num dado momento, como a hora andava longe, decidiu dormir. Subiu o poleiro, fechou os olhos e esqueceu-se do mundo. Quando acordou, tentou andar, não o conseguiu. Estava preso. Muito bem preso! Um prisioneiro sem as mínimas condições de continuar sonhando com realizações alvissareiras e progressistas.

Por fim, atônito e sem forças, o pinto, meio galo, levantou a cabeça, viu uma mulher se aproximar, agarrar o seu corpo, pisar em seus pés e acariciar suas mamas. No desespero, tentou dizer alguma coisa, mas não deu tempo. Uma faca transparente feriu-lhe o pescoço, findando seus sonhos. Seu destino seria a panela, onde se transformaria em comida para alimentar a gula de uma gente faminta. Uma pena! Mas foi assim: o pinto não mais cantou. Morreu.

Hoje já não se lembra mais daquele que, em algum momento de sua existência, achou ser possível lutar por uma vida melhor. Por isso, a rotina, no terreiro, permanece como d'antes. Por enquanto, nada mudou. Assim, o velho carijó continua poderoso, livre e solto, apesar dos vícios contraídos ao longo do tempo de sua governança.

*(SILVA, José Doniseti. In: Patos de Minas Cem Anos de Literatura e Um Século de Poesia, Patos de Minas. Da Anta Casa Editora, 1992).

Um comentário:

  1. A morte do pinto pode ser um símbolo da vida de alguém que no vigor da juventude sonha em mudar a realidade. Com o tempo, aparecem as desilusões e os sonhos morrem, triunfando assim o poder dos espertalhões que só pensam em si, deixando de lado as necessidades de seus comandados. A maioria de nossos políticos agem assim, só pensam neles

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