sábado, 6 de novembro de 2010

O novato

Ele chegou, numa sexta-feira, um jeito desconcertante, feito fera acuada, no meio da civilização. Achou lindo o modo como o professor iniciou os trabalhos de seu magistério naquele dia. A indiferença, porém, o incomodava. Ninguém lhe dirigiu palavras. Ele até que tentou, liberando timidamente um “bom dia”. A turma indiferente, não percebeu a sua presença. Ou melhor: fez questão de não observá-la. Pois ele estava ali, apesar de seu coração entristecido e de sua alma em pedaços.

O professor até que parecia boa praça. Falava sério, mas não representava qualquer ameaça. Às vezes esboçava uma piadinha, uma brincadeira sem graça, procurando descontrair a turma. Num dado momento, até ele, na condição de novato, achou engraçado, quando o professor, sem nenhuma queda para humorista, usou de um fato pitoresco colorindo, com um matiz especial, o assunto de sua aula.

O mestre, com seu jeito trapalhão, com sua calvície alongada e a escassez de cabelo na cabeça, disse de um sujeito desonesto que tinha tomado um dinheiro emprestado e nunca se interessara em pagar a dívida. Apesar da “sem graceza”, deu pra rir um pouquinho. Ou melhor: todos se esforçaram para rir para não deixar o professor desapontado.

Isolado num canto da sala, o novato ficou, engasgado, amargando o silêncio da discriminação, do preconceito e da exclusão. Era pobre, viera da roça, trazendo consigo a realidade natural refletida em sua origem campestre. As mãos calejadas pelo cabo da enxada, a tez queimada pelo calor do sol, suas vestes batidas pelo passar do tempo e as feições caídas pelo cansaço. Afinal, três horas de caminhada até à cidade não era para qualquer um, apenas para ele, o novato, que desejava muito retomar seus estudos, apesar da defasagem e, segundo pensava, do pouco embasamento.

Mas isso não era mau; ruim, era o desprezo, a discriminação e o preconceito. Ninguém lhe dirigiu palavras, nem o professor, apesar da temática da aula que ministrava: inclusão social, direitos humanos, cidadania.

O novato pensava, cabisbaixo, observava tudo, observava todos. O professor tagarelava muito. Sério ou não, falava em justiça, em respeito, em liberdade e independência. Independência ou morte! Ironizava.

Dizia o professor, citando o poeta Murilo... Murilo Mendes, era esse o sobrenome dele. Mas o professor falava que o “brado retumbante de um povo heróico” foi um alívio, um grande alívio pela liberação do cocô. Ou seja: o Imperador estava apertado, a parcimônia pressionava, ia sair de qualquer jeito e nada melhor do que um grito bem forte para deixá-lo livre em “berço esplêndido”.

Na verdade, o professor lembrava o poeta, cujo livro “Histórias do Brasil” satirizava e ironizava a pátria amada, a nossa pátria Brasil. Se o mestre falava verdade ou não, o novato não sabia. Sabia apenas que a “liberdade ainda que tardia” não era realidade entre nós, tampouco na sala de aula onde se achava de corpo presente, sem que os colegas e o professor dessem conta de sua opaca existência. Não havia justiça, nem respeito; havia discriminação e preconceito.

A independência do Brasil não libertou a maioria dos patrícios. São milhões os cativos, os injustiçados. Gente sofrida, sem eira nem beira, sem cidadania. Um estranho no ninho, com as pernas doendo, os pés descalços, encolhidos no chão da sala.

Vergonha, humilhação, dor; falta de amor, de solidariedade, compaixão. Mas era simplesmente um novato, não era cidadão, era o que parecia. Aliás, ali ninguém era, todos indiferentes, não lhe estendiam a mão. Assim, ele ficou. Quando a aula expirou, todos saíram, sem lhe dar atenção. Do jeito que iniciou, tudo terminou.

Cada vez mais triste, o novato ficou. Não entendia tanta indiferença. Onde estava a justiça, o respeito e a liberdade? Foi o último a sair, cabisbaixo. Durante as três horas de andança, voltando pra casa, ele seguiu pensando na difícil decisão: não dava para voltar, era muita humilhação.

A partir daquele dia, de novato em sala de aula, passou a desistente no diário do professor. Seu nome, sublinhado de vermelho, não significa nada, apenas um traço no lugar de alguém que não fora notado e que ora jaz no esquecimento da história educacional brasileira. Alguém que ficou sufocado, sem a oportunidade de exprimir seus desejos, permanecendo no anonimato, injustiçado, sem forças, sem direitos e sem cidadania.

(Professor Doniseti)

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